O ANEL MÁGICO DE FASTRADA

NOTA

Foi provavelmente ainda em vida de Carlos Magno que os trovadores e menestréis começaram a exaltar em suas canções as histórias, o valor e a fama do imperador e dos seus cavaleiros.
Essas canções e histórias pintavam então fielmente os costumes e tradições daqueles tempos. Mas foram correndo os anos. Morreu Carlos Magno; morreram os cavaleiros; morreram os menestréis e trovadores que os cantaram. Outros menestréis foram surgindo - os quais sucederam aos velhos bardos -, e também esses tomaram para tema predileto de suas trovas o Grande Imperador e seus doze paladinos.
Mas esses bardos mais novos foram aos poucos se descuidando da fidelidade da narração, de sorte que com o tempo foram aparecendo discrepâncias nas diversas interpretações.
Há algumas histórias, por exemplo, cujo enredo assenta o fato de trazer o cavaleiro o rosto oculto pela viseira -quando é certo que no tempo de Carlos Magno o elmo não protegia assim o rosto: foi somente mais tarde que se lhe acrescentou a viseira.
Além disso, essas histórias foram escritas em várias terras, em épocas diferentes, por diversos bardos; de modo que nem sempre coincidem as datas.
Quem escreveu esta história procurou corrigir essas discordâncias. Ficaram, porém, elas tal como se acham nas diversas tradições, sempre que foi possível tecê-las sem prejudicar a clareza e seqüência da narrativa.

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PREFÁCIO

Carlos Magno com seus doze paladinos ou pares não é menos célebre que o Rei Artur e seus doze cavaleiros.
Seu nome de batismo era Carlos. E a princípio governou a França como rei.
Mas esse rei da França moveu guerras encarniçadas contra os pagãos, conquistou terras, levou inúmeros sarracenos a aceitar o batismo da fé cristã, adestrou sua gente tanto na arte da guerra como na da paz. E reuniu ao pé de si um grupo de cavaleiros tão cheios de nobreza como jamais se tinha visto outro semelhante, salvo no tempo do Rei Artur: seu sobrinho Rolando, célebre no mundo inteiro; Reinaldo, primo de Rolando, quase tão famoso como ele; Olivério, o mais íntimo amigo de Rolando; Astolfo, que passava por ser o homem mais belo do mundo; Ogier, o Dinamarquês, bem-amado das fadas; e o gentil Florismaldo, que morreu defendendo a armadura de Rolando. E o Duque Naymes, o mais sábio dos conselheiros; e o Arcebispo Turpin; e Salomão da Bretanha; e Godofredo de Anjou; e Gualtério de Blay; e Ganelão, muito amado do imperador e em quem ele confiava mais que em qualquer outro - e que mais tarde o traiu.
Foram esses os que auxiliaram Carlos Magno a erigir sobre o seu reino um império.
Porque agora já não era rei, mas imperador; e já não o chamavam mais Carlos - mas Carlos Magno, isto é, Carlos o Grande: o mais sábio, o mais poderoso monarca do mundo, naqueles tempos heróicos da cavalaria.
Chamavam aos doze cavaleiros da corte de Carlos Magno `paladinos'; porque moravam no palácio; a `pares', porque eram todos iguais entre,si, isto é, parelhos nas proezas e feitos heróicos que praticavam. (N. do T.)
Diferem alguns dos nomes atribuídos aos pares, conforme os autores. Outros há, entretanto, que aparecem em todas as narrações: Rolando, Reinaldo, Olivério, Ogier (também conhecido por Olger), Astolfo, Florismaldo, Turpin, Naymes e Ganelão.
Os outros que figuram nesta história foram escolhidos entre os mais usados em diversas narrações. (N. do T.)

O ANEL MÁGICO DE FASTRADA

0 Rei Carlos Magno não tinha chegado à idade madura quando casou pela quarta vez.
Tinham morrido a primeira e a segunda esposas, mas a terceira vivia ainda: o rei aborrecera-se tanto dela que a mandou de novo para a casa do pai; encheu-a de presentes, mas proibiu-lhe que tornasse jamais à França.
Casou então com uma princesa do Oriente, chamada Fastrada. Era linda ! Tinha os olhos grandes e meigos; os cabelos eram negros como a noite, e a pele, branca de leite. E a boca não era menos escarlate do que a flor da romãzeira.
Desde o primeiro dia a princesa exerceu um estranho poder sobre Carlos Magno. O rei não podia passar sem ela - faltando-lhe Fastrada, nada lhe agradava, e saía a vaguear, inquieto a desatento a tudo. Mas quando ela reaparecia, voltava o rei ao seu modo costumeiro; com uma palavra ela o governava: desejo seu era lei para ele.
Os conselheiros reais andavam inquietos. E diziam uns aos outros:
- Não é natural que Carlos o Grande seja assim governado por uma mulher ! E não deixa de trazer seus perigos este domínio dela, porque, governando-o, ela governa a França inteira.
Ora, razões os tinham dizendo que aquilo não era natural. Porque o poder de Fastrada não residia na verdade nem na sua beleza, nem nos encantos que a adornavam, nem mesmo no amor do rei: esse poder emanava de um anel que ela usava.
Dera-lo seu pai, na hora da despedida. E dissera-lhe que, enquanto ela o tivesse consigo, traria Carlos Magno preso de tal modo que nenhum poder no mundo poderia apartá-lo dela. E mais, que, se viesse a perder o anel, perdida também estaria sua influência sobre o marido. E por isso guardava-o Fastrada como o seu mais precioso tesouro.
Passava o tempo, e o Rei Carlos Magno era sempre o mesmo escravo da princesa.
Mas as ásperas invernias da França não foram propícias a Fastrada.
Ela estava afeita a clima mais suave, a brisas mais amenas. E quando se erguia o nevoeiro, ou caía a neve, ela ia definhando como uma flor. Ia ficando cada vez mais pálida, mais pálida, mais fraquinha.
Até que chegou o seu último dia; e ela conheceu-o, mas ainda naquele momento desejou conservar seu poder sobre Carlos Magno - mesmo depois de morta. E, num momento em que ninguém olhava para ela, introduziu o anel na boca. E ali ficou o anel, e ninguém viu.
Expirou pouco depois; mas como o anel estava no seu corpo, este, mesmo sem vida, conservava o antigo poder sobre Carlos Magno. Que coisa estranha! - o corpo da princesa, que fora banhado em vinho e ungido de ungüentos preciosos, parecia tão belo como fora em vida: não murchara nem desbotara.
O rei passava todo o tempo na capela, ao pé da princesa morta. Em vão instavam os conselheiros para que sacudisse aquela tristeza, concitando-o a sair da capela a tomar de novo a direção do reino: nem parecia ouvi-los; nem lhes prestava atenção. E ali ia ficando, sempre abatido.
Foi então que o Arcebispo Turpin foi ter com ele. Era o arcebispo o mais ardiloso de todos os conselheiros, e um dos mais sagazes. Já suspeitara que havia algum sortilégio naquilo e que não era só o amor que prendia assim o Rei Carlos Magno junto ao corpo de Fastrada. E, tornando a ver o rei, convenceu-se de que não se enganara.
Buscou um pretexto para afastá-lo por um momento da capela. Mal saíra o monarca, começou o arcebispo a procurar algum encantamento; procurou às pressas, mas cuidadosamente. Revistou a roupa de Fastrada, pesada de ornamentos de ouro; procurou-lhe atrás das orelhas e por entre os cabelos; mas nada encontrou. Por último abriu-lhe a boca e viu que lá dentro, escondido, brilhava o anel.
Retirou-o da boca da moça a escondeu-o. Mal acabara de ocultar o anel, entrou de volta o rei. Vinha muito apressado, mas quando entrou na capela nem olhou para o lugar onde jazia Fastrada. Dirigiu-se para Turpin.
- Por que te encerras aqui, meu amigo? - perguntou-lhe logo. Vem comigo; vamos respirar o ar lá fora. Este cheiro de incenso faz-me mal. . . Além disso, preciso falar contigo. Vem! Estás mais perto de meu coração do que qualquer outra pessoa e tenho confiança na tua sabedoria - e só nela !
Saiu Turpin imediatamente, em companhia do rei, que se apoiava no seu braço e que lhe falava com muito carinho. Durante todo o dia Carlos Magno reteve o arcebispo a seu lado; e, quando anoiteceu, foi preciso armar uma cama para o conselheiro no aposento real.

Mas Turpin bem sabia que tudo aquilo era por artes do anel de Fastrada.
E começou então para o arcebispo uma vida nova - nova e bem fatigante! Carlos Magno não podia se apartar dele. Se o rei comia, o arcebispo devia comer com ele; se saía a passear a cavalo, Turpin também havia de cavalgar; se lhe dava vontade de falar, tinha Turpin de ouvi-lo ! E finalmente, quando o soberano repousava, também o arcebispo era obrigado a descansar. Já não tinha liberdade. É possível que alguém o invejasse, mas para ele aquilo só trazia fadigas a incômodos.
Se ele quisesse, é certo, poderia se despojar do anel; mas não queria fazê-lo, no temor de que caísse em mãos de alguma criatura indigna, que viria assim a influir na vontade do rei. E ia guardando o anel.
Certo dia resolveu o rei ir à caça, e Turpin teve de acompanhá-lo. Iam muitos caçadores e cortesãos, e o arcebispo cavalgava à direita de Carlos Magno.
Andaram e andaram, até que chegaram a um bosque, e nele se internaram. No lugar onde as sombras eram mais escuras, viram uma lagoa; tão profunda era, segundo dizia o povo, que jamais ninguém a sondara. Turpin ficou-se para trás e, num momento em que ninguém reparava, nele atirou o anel na lagoa. Fecharam-se as águas, e o anel lá ficou sepultado.
Apressou-se o arcebispo a alcançar os outros; ia agora de coração aliviado ! Chegou junto dos companheiros, no momento em que Carlos Magno conversava com Ganelão. Não deu atenção alguma ao amigo do peito: parecia que nem o vira chegar. Sorriam os cortesãos uns para os outros, contentes de ver o arcebispo assim desdenhado; mas mais contente ainda estava ele, se bem que o não demonstrasse.
Mais adiante Carlos Magno parou de repente, dizendo:
- Vi lá para trás uma lagoazinha; mal a notei na ocasião, mas agora me lembro de que era um lugar muito agradável. Vamos até lá, para ver de novo a lagoa.
Deu volta ao cavalo, e todos o seguiram. Chegaram ao lago, Carlos Magno parou e ficou ali muito tempo, a olhar para a água.
- Por minha fé ! - disse afinal. - Nunca meus olhos viram lugar mais agradável; hei de construir aqui uma capela toda de mármore, delicadamente esculpida. Virei aqui muitas vezes, para orar e para olhar a água.
E assim fez o rei. Pouco tempo depois erguia-se uma capela à beira da água. Conforme o desejo do rei, era toda de mármore branco, esculpida com perícia e delicadeza e tão bela que maravilhava a todos que a viam. Ali vinha o rei seguidamente, porque era sua capela favorita; com o andar do tempo ergueu-se ali também uma cidade: uma cidade conhecida pelo nome de Aix la-Chapelle. E a nenhuma quis mais o rei do que àquela, em toda a França.

Correram porém os anos, e as águas da lagoa foram sendo absorvidas, entrando pela terra, e secaram. O anel, entretanto, jamais foi descoberto, e de seu poder mágico de outrora nada mais ficou, senão o amor de Carlos Magno à capela e à cidade.